quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Devaneios sobre a Liberdade Pagã


Vira e mexe deparo, no meio de discussões, com o argumento da LIBERDADE PAGÃ. Outro dia fiquei pensando: liberdade de quê? Liberdade até onde? Liberdade para quê? Afinal, o que é essa LIBERDADE PAGÃ?
Sem querer filosofar, a liberdade - como qualquer outro valor - é ambígua... pois o homem e os próprios Deuses são ambíguos. Normalmente pensamos em liberdade como "a faculdade de cada um de se decidir ou agir segundo sua própria determinação". Em termos wiccanos: FAÇA TUDO O QUE QUISERES. E isso parece bom, muito bom... ao menos para quem está agindo segundo essa concepção de liberdade.
Coloquei-me, então, do outro lado, no lado daquele que é objeto dessa liberdade exercida por alguém. Aí vi que ela também pode ser ruim, muito ruim... ao menos para quem está sofrendo sua ação. Quem de nós já não foi "vítima" de amigos, vizinhos, colegas de trabalho ou de escola que, agindo em sua liberdade, acabaram invadindo o nosso espaço? Falo daquele que, por exemplo, leu uma mensagem que recebemos, mexeu em nossa mochila, comentou com terceiros confidências que lhe fizemos, abriu nossa geladeira e se serviu na maior sem-cerimônia... Agiu em nome de sua plena liberdade - e isso foi bom para ele -, mas resultou numa agressão à nossa igualmente plena intimidade - e isso foi ruim. Percebo, então, que posso, sim, fazer tudo que quiser, DESDE QUE NÃO PREJUDIQUE A NINGUÉM.
Mas então isso implica que não existe a tal "plena" liberdade; que por mais paradoxal que pareça, a liberdade tem um limite! E mais: que o limite é o outro! Resta-nos saber, então, "quem" é esse outro, já que ele estabelecerá o limite até onde minha liberdade pode ser plena, legítima.
Não pestanejo; pego o meu velho Aurélio e leio: "OUTRO é o que é diferente da pessoa ou coisa especificada". Ora, se busco compreender os limites da "minha" liberdade, OUTRO serão todos aqueles diferentes de mim: as pessoas, os animais, os vegetais, as pedras, o rio, a montanha, o céu, o ar, o fogo... e por aí vai uma lista de tal forma interminável que nem o tal Aurélio conseguiria dar conta. Estupefato, me questiono: se há essa infinitude de limites, então onde fica minha liberdade?
E aí pintou uma luz: eu também sou limite da liberdade de todos os outros! Se é assim, liberdade seria, fundamentalmente, o DIREITO DE SER. Noto, então, uma palavrinha que ficou meio esquecida naquela definição inicial: liberdade é FACULDADE DE... Ora, faculdade indica uma "capacidade", um "poder fazer algo". Então, liberdade é a CAPACIDADE DE SER.
Respiro novamente aliviado: acabo de redescobri que realmente sou livre, pois sou capaz de ser... Mas o outro também é!? Então, liberdade soa melhor como capacidade de ser e de deixar o outro ser também. Ou seja, de SERMOS JUNTOS! Ser livre é, pois, ser capaz de ser amigo deixando o outro ser inimigo; de ser amante deixando o outro ser indiferente; de ser maduro deixando o outro ser irresponsável; de ser desregrado deixando o outro ser metódico... E, é lógico, o inverso também vale. O importante é o SER JUNTO COM ou JUNTO A.
Descubro que liberdade é um fenômeno de COMUNHÃO. E aí me entristeço profundamente: os humanos ainda não aprendemos a ser livres! Ainda não aprendemos a comungar, a sermos juntos com todo o restante do universo. Nem nós, pagãos, que pregamos uma liberdade fundamental. Ora queremos juntar todos sob uma mesma bandeira - a da Antiga Religião -, destruindo toda e qualquer diferença, individualidade, particularidade e propriedade; ora lutamos por classificar todos - as diferentes tradições -, matando a comunhão/liberdade.
Se liberdade é SER JUNTO, ela pressupõe um duplo axioma: a diferença e a união. Só é possível comungar com quem é diferente - coisa estranha querer comungar comigo mesmo; bastante narcísico, egocêntrico. E é na comunhão que me descubro diferente do outro, único, ímpar. Portanto, para realmente sermos livres, falta-nos uma reflexão mais séria e aprofundada sobre (1º) aquilo que nos reúne sob o título de PAGANISMO e (2º) aquilo que nos torna distintos. Creio que precisamos, antes de qualquer coisa, nos debruçarmos sobre o próprio umbigo e definirmos o que é ser pagão. Quer dizer: precisamos ter mais clareza de quais são os PONTOS FUNDAMENTAIS do ser pagão; o que nos torna diferentes dos católicos, protestantes, budistas, muçulmanos, kardecistas, taoistas, etc. Pagãos norte-americanos, parece-me, já fizeram algo assim. Concordamos? Discordamos? Nem sequer discutimos? Aceitamos mesmo assim? Não nos diz respeito? Seja como for, urge sabermos QUEM EXATAMENTE SOMOS, qual é a nossa IDENTIDADE.
Estabelecido isso - o que nos une, reúne e congrega -, precisaríamos ter clareza, também, sobre O QUE NÃO SOMOS, ou seja, o que é próprio do outro - do cristão, judeu, budista, etc, etc -, estabelecendo o que nos distingue.
Resta, por fim, o intermediário: aquilo tudo que se encaixa no espaço deixado entre O QUE SOMOS e O QUE NÃO SOMOS. É aí que transitam as diferentes Tradições pagãs. Compreensões, visões, modos de agir, rituais, panteões que, embora não sejam a essência do paganismo, nos pertence pois não é do outro. Seriam os "secundários", ou seja, o conjunto de práticas e idéias que não ferem o que nos é fundamental mas também não nos definem. Acho que é exatamente aqui que está localizado o nosso ponto de discórdia. Agora veja, exatamente naquilo que não nos é fundamental...
Esse “intermediário” é o lugar da discussão, da discordância, da minha opinião, enfim, o campo legítimo do exercício da liberdade pagã. É onde se situam questões do tipo espada x athame, grimório x livro das sombras, pentáculo x pentagrama, Elemento arquetípico x elementais força-bruta, norte x sul e tantas outras coisas cuja discussão deveria apenas nos enriquecer. Assumir a existência desse "campo da liberdade" é aceitar o eterno confronto sem, jamais, nos deixarmos cair no conflito.
E é aqui, também, que consigo situar a maioria dos livros e artigos que tenho lido. Normalmente com proporções e coração “dicionárico”: capítulos, com seus títulos a la verbete, discorrem sobre "saberes" que se pretende transformar em verdades coletivas, das quais ninguém duvide, ou seja, nas quais todo mundo acredite. Apresentam a reflexão de um autor (ou grupo) sobre o conteúdo desse "campo da liberdade", na ficção de homogeneizar o heterogêneo. Para unir na marra, não raro encontro "colagens" exóticas que, como máscaras, tentam ocultar as diferenças e cultivar no imaginário dos leitores a idéia de unidade e harmonia constitutivos de uma religião sem confrontos. Oferecem um conhecimento padronizado que, pela força da repetição, querem transmutar em sinônimo de verdade. Mas, pergunto a esses: como capturar o que é livre sem destruir-lhe a liberdade?
Vejo intelectuais de uma e de outra Tradição tentando se apossar desse lugar - através de uma violência simbólica e "simpática" mas que, no entanto, gera oprimidos e excluídos reais.
Se misturarmos tudo isso, a taça a ser servida é a da existência de um paganismo de liberdade limitada já que seu eixo, que deveria ser igualdade, é, entre nós, personalismo.
Urge, ao meu ver, que os pagãos - hoje vulgarmente transformados mediante a soma de um prefixo: neo - tenham a coragem, a vontade e a paciência de sentarem-se com todas essas cartas à frente e, no exercício da radicalidade, isto é, da crítica a tudo, definir O QUE SOMOS, O QUE NÃO SOMOS e EM QUE SOMOS LIVRES.
Devaneios!


HERNE, the Hunter

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